Há artistas que aparecem e deixam um rasto, outros que criam um território. D’Angelo pertence à segunda categoria. Michael Eugene Archer nasceu em Richmond, Virgínia, em 1974, cresceu entre o gospel e o piano, entre a voz da igreja e o som que ecoava dentro de casa. Aprendeu cedo que a música podia ser um refúgio e uma forma de fé. Daí vem o timbre quente, o jeito de cantar como se rezasse, e o impulso de transformar o soul em algo vivo, íntimo, imperfeito e profundamente humano.
A origem da neo-soul
Quando D’Angelo lançou Brown Sugar, em 1995, o R&B vivia um período de brilho e polimento. Ele trouxe o oposto: instrumentos tocados por pessoas, ritmos que respiravam, imperfeições que soavam reais. Não se tratava apenas de nostalgia, era uma recusa em ser artificial. Essa atitude viria a definir a chamada “neo-soul”, movimento partilhado com Erykah Badu, Maxwell, Lauryn Hill e outros que procuravam devolver humanidade à música negra contemporânea. “Quis fazer um disco que soasse como os que eu ouvia em miúdo, mas com o som do presente”, disse numa entrevista à Vibe em 1996. “Nada de truques, nada de efeitos, só groove, alma e verdade.”
Brown Sugar: o início de uma linguagem
Gravado com a calma de quem quer sentir cada nota, Brown Sugar trouxe canções como “Lady” e “Cruisin’”, versões e originais que apontavam para um novo classicismo. O disco cheirava a Marvin Gaye, Donny Hathaway e Curtis Mayfield, mas a voz, o fraseado e a produção eram de alguém que não estava a olhar para trás, estava a conversar com o passado. Foi um sucesso discreto mas profundo, e a crítica percebeu logo que ali havia mais do que talento: havia direção. A Rolling Stone chamou-lhe “a voz mais quente e menos óbvia do R&B dos anos 90”.
Voodoo: o corpo e o espírito
Cinco anos depois, D’Angelo regressou com Voodoo. O álbum nasceu no Electric Lady Studios, em Nova Iorque, onde ele, Questlove, Pino Palladino e outros músicos passavam horas a improvisar. Nada era mecânico. Gravava-se com fita analógica, muitas vezes sem metrónomo. O som era suado, arrastado, vivo. Em 2000, o público ficou dividido entre o encanto e a surpresa. O vídeo de “Untitled (How Does It Feel)” transformou D’Angelo em símbolo sexual, algo que o próprio rejeitou. “Não era isso que eu queria que as pessoas vissem”, confessou anos depois à GQ. “Eu queria que ouvissem a música, mas só viam o corpo. Foi o momento em que percebi o peso da fama.” Voodoo é, ainda hoje, um dos álbuns mais influentes do século XXI. O som “atrasado” de Questlove na bateria e o groove orgânico tornaram-se escola para toda uma geração
Silêncio, queda, regresso
O sucesso trouxe também uma sombra. A pressão, as expectativas e os problemas pessoais levaram D’Angelo a afastar-se durante mais de uma década. Pouco se ouviu dele, nenhuma entrevista, nenhum concerto. Questlove, seu amigo e baterista, disse uma vez: “D’Angelo não desapareceu. Está apenas a tentar voltar para dentro da música. Ele nunca a deixou.” Em 2014, o silêncio terminou. Black Messiah surgiu de surpresa, sem pré-aviso, num contexto de tensão racial nos Estados Unidos. As canções falavam de amor e de protesto, de espiritualidade e resistência. “A música pode ser uma arma ou uma cura”, disse D’Angelo na altura. “Este disco é as duas coisas.”
Black Messiah: maturidade e mensagem
Gravado com a banda The Vanguard, o álbum misturava soul, rock, funk e psicadelismo. “Really Love” e “The Charade” mostraram um artista em plena consciência do mundo e de si próprio. A crítica saudou o regresso como uma revelação. The Guardian escreveu: “D’Angelo não é um artista de modas, é um médium. A música fala através dele.”
Relações e diálogos musicais
D’Angelo nunca trabalhou isolado. O seu nome cruza-se com uma teia de músicos que marcaram a soul moderna: Questlove, J Dilla, Raphael Saadiq, Erykah Badu, Common. Juntos formaram o coletivo Soulquarians, um núcleo criativo que redefiniu o som do final dos anos 90 e início dos 2000. Angie Stone, cantora e antiga companheira, participou nas primeiras sessões de Brown Sugar. Mais tarde, ele viria a inspirar toda uma geração, de Frank Ocean an Anderson .Paak, de Solange a Daniel Caesar.
O palco e a presença
Quem o viu ao vivo sabe: os concertos de D’Angelo são rituais. Ele entra devagar, como quem sonda o espaço, e quando o som começa, o tempo muda de velocidade. Cada canção é alongada, reimaginada. O público não é espectador, é cúmplice. “Gosto de quando a música se transforma num corpo que todos sentimos ao mesmo tempo”, disse numa entrevista à NPR em 2015. “É aí que acontece o verdadeiro milagre.”
O Legado
D’Angelo é um dos poucos artistas contemporâneos que conseguiram unir o sagrado e o sensual sem perder autenticidade. Reinventou o soul sem o desrespeitar. Mostrou que o silêncio também pode ser um ato artístico. E lembrou a todos que a música não precisa de pressa para ser eterna. Entre Brown Sugar, Voodoo e Black Messiah, há quase vinte anos de distância, e uma só linha de coerência: a procura da verdade. Como disse uma vez, num raro momento de exposição:
“Não estou aqui para entreter. Estou aqui para sentir. E se sentires comigo, então a música cumpriu o seu destino.”